O Livro

A Cabine do Capitão talvez fosse o melhor lugar do navio. Em todos os navios via-se muito luxo, ouro, jóias, tesouros inimagináveis. Coisas muito belas, muitos vestidos de donzelas que por ali passaram (e que nunca ficaram, pois todo mundo sabe que mulher em navio dá Azar). Normalmente era um cômodo enorme, na melhor localização do Navio e também no lado mais protegido dos canhões inimigos.
Mas não ali.
O Navio ali era diferente. A Tripulação era diferente e, o Capitão também era diferente.
Não que fosse menos ranzinza, ou ainda cordial. Isso eram características de um bom Imediato.
Mas o Capitão do Tien Long não se reservava o direito de viver no conforto enquanto sua equipe sofria. Afinal, ele tinha sido eleito, de forma justa e por todos, como o Capitão. O Capitão tinha sim seu quarto separado dos outros, mas raramente dormia nele. Os aposentos do capitão estavam mais para uma sala de Reuniões, de partilha de Butim e traçamento estratégico, do que para um local de Luxo.
Claro que convém comentar que, por ser afastado dos alojamentos da tripulação, em um canto escuso do Navio e também por (e principalmente por) ser bem afastado da Cozinha e seus Barris de Rum, dificilmente o Capitão encontrava o caminho de volta, bêbado que nem um gambá.
Outrora era muito comum vê-lo andando pelos corredores a noite, trançando as pernas, muitas vezes apoiado em um dos Mestres do Navio e dizendo: Eu não estou bêbado, eu só pareço bêbado. Eu estou fingindo.
Mas isso não tinha acontecido ainda. Eles estavam a duas noites no Mar e o Capitão continuava sóbrio. E estava em seus aposentos.

Há duas horas ele estava sentado na frente do Livro. Poucos Piratas sabiam ler na verdade, mas em seu Navio era diferente. Todos sabiam, pois todos tinham chance de ser o Capitão e, o Capitão sempre precisa ler. Ele sempre precisa ler AQUELE livro. O Livro do Código.
Os capitães piratas tinham de seguir este regulamento à risca, pois a sua tripulação poderia revoltar-se contra o seu capitão, por exemplo, deixando-o numa ilha deserta, só com uma bala e pouco mais.
E lá estava ele, sentado com o livro sobre a mesa, fechado. Os momentos dos ultimos dois anos de prisão repassavam em sua mente. Ele lembrava de cada tarde preso, de cada vez que sentia o cheiro do Sal no vento e que sabia que era no mínimo injusto tê-lo colocado ali. Mas agora ele estava livre, e tinha o seu navio e sua tripulação de volta. E, para isso, precisava lembrar-se do Código. Ele sabia que não precisava ler, porque não tinha se esquecido de nada. Não havia modo de fazê-lo esquecer.
Mas mesmo assim ele abre o livro.
I - Todos os homens têm voto nos assuntos do momento e têm igual direito a provisões frescas ou a licores fortes, a qualquer momento desejado e podem usá-los a seu bel-prazer, a não ser que escassez torne necessário, para o bem de todos, votar o racionamento.
II - Todos os homens só têm de ser chamados no seu turno, seguindo a lista, pois eles podem, nos seus turnos, descansar e fazer algo livremente, mas se eles defraudarem a Companhia no valor de um dólar no prato, jóias ou dinheiro, têm o castigo de serem abandonados numa ilha deserta. Se o roubo ocorrer apenas para com qualquer outro marinheiro da tripulação, eles contentam-se cortando as orelhas e o nariz ao culpado, e deixando-o numa costa inabitada, não num sítio qualquer, mas num sítio onde navios o possam encontrar.
III - Nenhuma pessoa pode jogar às cartas ou aos dados por dinheiro.
IV - As luzes e as velas têm de ser apagadas às oito horas da noite. Se alguém da tripulação, depois dessa hora querer continuar a beber, terá de o fazer no convés.
V - Têm de manter as suas peças, pistolas, e restantes armas limpas e prontas para batalhar.
VI - Nenhum rapaz ou mulher é permitido(a) estar entre homens. Se algum homem for encontrado a seduzir ou a fazer sexo, e levá-la até ao mar, disfarçando, ele sofrerá ate morte.
VII - Quem abandonar o seu navio ou o posto de combate, deverá ser castigado com a morte ou ser abandonado numa ilha deserta.
VIII - A lei de parley so usa-se por capitaes em situacao de risco , as disputas de todos os homens devem ser terminadas em terra com os alfange.
IX - Nenhum homem pode falar em desistir da vida de pirata, sem antes ter partilhado 1.000 libras. Se para isso, algum homem tiver de perder um membro, ou tornar-se incapacitado para o seu serviço, ele teria de ter 800 dólares, fora do armazenamento público, e por ferimentos, proporcionalmente.
X - O capitão e o contramestre têm de receber dois quinhões do saque. O imediato, o mestre, o oficial e o homem de armas, um quinhão e meio, e outros oficiais, um quinhão e um quarto.
XI - Os músicos podem descansar no dia religioso de Sabbath (Sábado entre os judeus, Domingo entre os cristãos), apenas à noite, mas nos outros seis dias e noites, não poderão descansar sem um favor especial.
É, ele se lembrava de tudo. Claro. Ele era o Capitão.
E era melhor ir ver o que aqueles cães sarnentos estavam fazendo por que estava demorando por demais para chegarem na primeira parada.
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